A Qualidade em Educação

A maneira tradicional de se conceber a qualidade em educação passa pelo conceito de sucesso ou insucesso de cada escola. E estes conceitos são aferidos, vulgarmente, pelos conhecimentos de pedagogia que os docentes dominam e pela capacidade que estes têm de os utilizar na sala de aula. Raramente, se atribui o sucesso ou insucesso da escola e, consequentemente, o grau de qualidade obtido pela mesma à adequação dos programas preestabelecidos e das matérias leccionadas às capacidades e aos interesses reais dos alunos.

Por outro lado, as metodologias acima referidas, quando conseguidas, poderiam ser um processo válido e adequado para se promover um ensino de qualidade, mas convenhamos que a qualidade em educação, como tal, é outra coisa bem mais abrangente e tem de contemplar obrigatoriamente a vertente social. Por outras palavras, a escola deve estar profundamente preocupada com as respostas a dar às necessidades e aos desafios que a comunidade, em cada época, lhe põe. Sabendo que os jovens em formação serão os adultos com responsabilidades nas primeiras décadas do século XXI, só estaremos a promover uma educação de qualidade se os programas e as metodologias usados estiverem de acordo com aquilo que se pretende para a formação desses jovens.

Rodolfo Stafenhagen formula o problema nos seguintes termos: "Se queremos saber que modelo de educação necessitamos para o século XXI, é necessário analisar a questão do ponto de vista social. Qual o género de mundo que nos espera no início do próximo milénio? " (Stafenhagen (1997). O tesouro da educação: uma velha arca apta para enfrentar o século XXI?, in Nos 10 anos da lei de bases - memórias e projectos, Porto: ASA, pág. 69). Vejamos, pois, que desafios são esses.

Tendências mundiais que vão marcar a sociedade

O mundo em que vivemos está marcado pela síndroma da mudança. Tudo muda vertiginosamente na vida social, cultural e económica, tendo por base o fenómeno da globalização, e os desafios do progresso e do desenvolvimento em áreas tão sensíveis como a ciência e a tecnologia.
A globalização altera, diariamente, as relações entre os povos, as sociedades, os grupos sociais e étnicos, as confissões religiosas, as organizações de empresas, os movimentos de trabalhadores e, o que é mais preocupante, por absurdo, a nossa própria visão do mundo e a nossa auto-estima.

As grandes alterações políticas das últimas décadas, como o emergir das potências asiáticas, o cerrar fileiras por uma União Europeia, a queda do muro de Berlim, a desintegração das ideologias, o fim dos superpotentes estados comunistas, tudo recebe força e seiva do fenómeno da globalização.

"Para alguns, a globalização não é apenas um novo facto histórico, mas sim antes de mais uma oportunidade de romper com laços tradicionais, para compartilhar o progresso e o bem-estar à escala mundial; é vista, inclusivamente, como uma necessidade iniludível: aqueles que ficarem de fora não se sentarão à mesa dos deuses" (Stafenhagen, op. cit., pág. 70).

Por isso será preciso ter-se em consideração este facto e adequarem-se as metodologias e as estratégias na formação das novas gerações. Estará o sistema educativo português atento a estes desafios e a estas necessidades? Que medidas urgentes deverá o estado tomar para que os jovens, que frequentam as nossas escolas, não se sintam defraudados com o mundo que lhes vamos deixar em herança? A globalização tanto pode abrir caminhos para a casa comum do futuro e nele rasgar portas e janelas, como pode inviabilizar o seu acesso ou transformá-lo numa vala de esperanças mortas.

Por sua vez, os avanços da ciência e da tecnologia operam profundas mudanças na vida das comunidades. Os progressos alcançados na agricultura, na medicina, na electrónica, nos sistema de informação e nos demais ramos do saber são notórios e não precisam de provas. A rapidez com que estas conquistas se operam, e o modo implacável como actuam sobre a nossa maneira de pensar, de ver o mundo e de estar em sociedade, levam-nos a aceitar a abertura de um fosso intransponível entre a era da modernidade e a era da pós-modernidade. Das cinzas do homem moderno está a surgir um homem novo, em tudo diferente daquele, na sua idiossincrasia, na sua postura perante a natureza e o ambiente, na sua relação com a escala de valores e nas expectativas que alimenta com relação ao futuro. É um ser inteligente, culto, tecnicamente bem apetrechado, mas que caminha cambaleando por entre os destroços do mundo que destruiu sem ter gizado, atempadamente, o plano das estruturas do novo mundo a criar.

É perante esta situação que o sistema nacional de ensino se deve posicionar e é a este homem paradoxalmente todo poderoso e vacilante que deve dar respostas e abrir caminhos para uma nova utopia e uma nova ucronia, isto é, para um mundo novo e um tempo novo. Neste ponto, faço minhas as apreensões de Rodolfo Stafenhagen: "A ciência que se ensina nas nossas instituições educativas é a ciência do futuro, a do presente ou é, o que parece ser mais comum, a ciência de ontem já ultrapassada? Para uma criança ou um jovem, qual a utilidade dos conhecimentos científicos que parecem tirados de livros de história e não de manuais de ciência contemporânea? (...) Se um dos objectivos mais preciosos da educação consiste em promover o conhecimento científico e as suas aplicações aos problemas práticos do mundo em que vivemos, é imprescindível perguntar qual a ciência desenvolvida nas Universidades e Institutos de investigação dos países desenvolvidos e dos países subdesenvolvidos (...) ?" (Stafenhagen, op. cit., pág. 72). Qual a ciência e a investigação desenvolvidas nas escolas do nosso país?

A realidade é chocante; no mundo em que vivemos fervilham esperanças e contradições. No entanto, é neste mundo, e com estes conflitos, que as gerações futuras terão que encontrar sementes de paz e de felicidade. A escola tem que os preparar para não perderem a esperança e para assumirem o risco. Só a escola que o conseguir, terá conseguido atingir um desempenho de alta qualidade. Como fazê-lo?

Tarefas fundamentais para a educação no início do século XXI

A UNESCO tentou dar resposta às perguntas anteriormente formuladas, publicando, em 1996, o resultado de uma "reflexão sobre a educação e a aprendizagem no século XXI", elaborada por uma Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, constituída para o efeito e chefiada pelo sr. Jacques Delors, então Presidente da Comissão Europeia.

Embora a Comissão atribua à educação um papel importante na solução dos problemas que afligem a comunidade humana, em cada momento da sua história, não a culpabiliza por todos os atropelos cometidos nem a considera capaz de os resolver na sua totalidade. No entanto, segundo o seu parecer, "a educação deve organizar-se à volta de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as actividades humanas; finalmente, aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes " (J. Delors, (1996). A educação, um tesouro a descobrir, Porto: ASA/Edições UNESCO, pág. 77).

Aprender a conhecer

É frequente que, em nome de uma qualquer pedagogia, se prostitua o acto educativo, reduzindo-o a um processo mercantilista que se preocupa apenas com a preparação do jovem para a vida activa ou para a prossecução de estudos, dando prioridade à aquisição de um diploma que garanta estatuto social e um emprego altamente lucrativo. Esquece-se que, "independentemente do desenvolvimento económico, a educação deve servir para promover o desenvolvimento humano, para melhorar e enriquecer a vida de todos os seres humanos" (Stafenhagen, op. cit., pág. 76). É urgente orientar o jovem para os avanços da ciência e da tecnologia por ser este um dos mais ricos e prometedores tesouros do património da humanidade. Por isso o acto educativo deve preocupar-se em ensinar o jovem a aprender a conhecer.

Aprender a fazer

A organização do trabalho e a relação do trabalhador com a produção estão a ser alteradas. Os empregos para toda a vida e o desempenho de profissões para as quais o trabalhador obteve formação escolar acabaram já ou estão em vias de acabar. Em seu lugar, surgirão apenas tarefas às quais o trabalhador se deve candidatar só ou em grupo, enfrentando uma concorrência feroz. Pior ainda: dentro de poucos anos, os empregadores relegarão para segundo plano os diplomas dos candidatos e passarão a dar importância às capacidades que eles desenvolveram e àquilo que eles sabem fazer depressa e bem.
Perante esta realidade, as instituições educativas não devem ministrar apenas conhecimentos do passado nem fornecer conteúdos para a vida toda; devem, antes, recorrer a conteúdos actuais que sirvam de base ao desenvolvimento das capacidades dos jovens em formação, incutindo-lhes o hábito de, permanentemente, aprenderem a fazer novas coisas.

Aprender a viver em conjunto

O princípio da globalização comporta os genes do desenvolvimento económico e financeiro das comunidades produtoras de riqueza, mas dá origem a um "universalismo homogeneizador" que põe em risco a identidade cultural dos povos e corrói o entendimento mútuo e a sã convivência entre todos. Seria desejável que todos os povos fossem enxertados num mesmo tronco comum, donde recebessem a seiva e a vida, sem hipotecarem a sua dinâmica cultural interna que os levasse a produzir frutos próprios e únicos. A educação terá que incutir no jovem o ideal democrático, promovendo nele a tolerância e o respeito pela cultura, a religião e os valores de cada povo. Terá que ser preocupação prioritária da escola ensinar o jovem a "aprender a viver em conjunto".

Aprender a ser

O acto educativo deve preocupar-se fundamentalmente com a formação integral do ser humano, considerando-o como um todo constituído de espírito e corpo, em que as necessidades materiais não se devem sobrepor às necessidades espirituais nem estas àquelas. A sensibilidade, a inteligência e o gozo estético são o pão e a água que matam a fome e a sede do espírito humano; a saúde, o bem-estar e a posse de riquezas materiais são os ingredientes que àqueles se vão unir para abrir caminho para a paz e a felicidade. É necessário que o homem aprenda a saber estar de maneira equilibrada no meio de todos estes elementos em rotação permanente geradora de desequilíbrios equilibrados. Este desafio é posto à educação e constitui a sua tarefa mais nobre.

Como passar da teoria à prática?

Para trás fica um enquadramento teórico dos desafios que serão postos à educação nas próximas décadas e dos caminhos que esta deverá seguir. Foi com base nesses pressupostos e na aceitação das propostas da Comissão da UNESCO que o Conselho Editorial da Revista de Psicologia, Educação e Cultura escolheu para este número como tema principal - Qualidade em Educação, na sequência das 3.as Jornadas Psicopedagógicas de Gaia, realizadas no Colégio dos Carvalhos (30 de Novembro - 1 de Dezembro de 1998) subordinadas à mesma temática. O resultado da investigação realizada nesse campo vem publicado, na primeira parte deste número da revista; na segunda parte, publicam-se artigos que abordam temas mais amplos na área da Psicologia.

Autor:
João de Freitas Ferreira

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